Na edição de ontem do The Guardian há um artigo que desmitifica Bolaño, a partir do olhar de Horacio Castellanos Moya, escritor e amigo do autor chileno
Balzac e Proust
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Na edição de ontem do The Guardian há um artigo que desmitifica Bolaño, a partir do olhar de Horacio Castellanos Moya, escritor e amigo do autor chileno
Balzac e Proust
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«Quando se começa a ler, damo-nos conta de que é qualquer coisa de novo que está ali, uma espécie de “livro sobre todos os livros”, muito à maneira de Borges, mas rompendo com aquele tom do “mágico latino-americano”. De alguma maneira, se Macondo é o lugar fundador de uma parte dessa literatura, Santa Teresa [a cidade do romance de Bolaño] é o fim de toda a inocência, é a cidade onde o fantástico passa a ser épico.»
Francisco José Viegas sobre 2666, em declarações ao Actual/Expresso.
Em Soldados de Salamina o escritor Roberto Bolaño, enquanto personagem, fala às tantas dos seus amigos sul-americanos que desapareceram, embora continuem a existir porque ele se lembra deles e escreve sobre eles. Agora é a própria memória de Bolaño, que entretanto morreu, que está defendida no seu livro. Os ficcionistas têm um dever da memória?
Claro. Porque a literatura é memória. A literatura o que faz é resgatar os mortos. Há um poema de Thomas Hardy sobre a segunda morte, a morte definitiva, que é quando já não existe ninguém que se lembre de nós. Pois a literatura é uma batalha para que essa segunda morte não aconteça. É como Orfeu buscando Eurídice no inferno. É arrancar os mortos à morte. E é também como se os mortos se agarrassem a nós com todas as forças, para não morrer de vez. A literatura não pode ser outra coisa a não ser isto. Uma batalha contra o esquecimento, contra a morte. Porque as palavras não morrem. Porque a linguagem não morre.
A pergunta é de José Mário Silva, a resposta de Javier Cercas. A entrevista - a propósito do livro Soldados de Salamina (Asa, 2006)- publicada no suplemento 6.ª do Diário de Notícias, a 10 de Março de 2006]
«A pior coisa que se poderá dizer de um escritor é que não tem mundo. Já li muitos livros assim: a linguagem é perfeita, as metáforas são precisas, há silepses voluntárias, adjectivos inesperados, comparações maravilhosas, e personagens que racionalizam o que não deveria poder ser racionalizado; fazem-no com brilhantismo, tal como o autor brilhantemente ordena as palavras no papel, constituindo uma mónada quase perfeita. E, depois, o livro é igual a coisa nenhuma, porque nada nos diz sobre a precaridade, violência e beleza das nossas vidas. Sempre que, nos últimos tempos, abro um livro onde se lê na capa, em letras maiúsculas: romance, e encontro mais um escritor determinado a abrir outro guichet vanguardista pós-moderno, determinado a ser (muito) mais inteligente do que o leitor, a querer demonstrar tudo sem nos mostrar nada, torno a fechá-lo imediatamente: lições de filosofia disfarçadas de literatura não me interessam, da mesma maneira que não me interessa filosofia de pacotilha disfarçada de romance. E depois li "Os Detectives Selvagens", descobri Roberto Bolaño, e apaixonei-me outra vez pelos livros. Abri-lhe um lugar muito especial na estante, varrendo quase todos os outros autores que lá se encontravam para o chão. Bolaño não só tem mundo – o mundo inteiro como nos sorri, pisca o olho, e convida a entrar."Os Detectives Selvagens" é um livro grande, de 577 páginas na edição da Picador, e devora-se com voracidade incontrolável. É brutal, belo e enigmático, como a literatura devia ser. Da vida inquieta de Bolaño e da sua escrita tão carnal e tão inteligente na sua exultante demonstração de simplicidade tira-se uma conclusão apenas: os livros podem mudar a nossavida. Assim, reconciliei-me com os escritores: Bolaño é suficientemente grande para os redimir a todos.2666 com um aperto no coração, sabendo que essa obra será a última.
Fica aqui um dos meus excertos preferidos de "Os Detectives Selvagens, quando María Font encontra Ulises Lima e Arturo Belano (os detectives selvagens...) depois de estes regressarem do deserto de Sonora...
They shrugged their shoulders. Who knows, María, they said. I'd never seen them look so beautiful. I know it sounds silly to say, but they'd never seemed so beautiful, so seductive. Although they weren't trying to be. In fact, they were dirty, who knows how long it'd been since they'd showered, how long since they'd slept, they had circles under their eyes, and they needed to shave (not Ulises, because he never had to shave), but I would've kissed them both, I don't know why I didn't, I would've gone to bed with them both, fucked them until we passed out, then watched them sleep and afterward kept fucking. I thought: if we find a hotel, if we're in a dark room, if we have all the time in the world, if I undress them and they undress me, everything will be all right, my father's madness, the lost car, the sadness and energy I felt and that at moments seemed about to choke me. But I didn't say a word.»
João Tordo sobre Roberto Bolaño.
Publicado em Março de 2008, em Espanha, pela Editorial Candaya, este livro sobre Roberto Bolaño trazia um DVD com um documentário sobre o autor. Roberto Cercano (Roberto de Perto, em português) realizado por Erik Haasnoot. Vale a pena ver esta primeira parte onde Lautaro, seu filho mais velho, lê um texto onde se fala de sonhos - uma dos temas mais perturbantes do 2666. E também o comentário de Enrique Vila-Matas depois do relato que Bolaño faz dos efeitos de «La Asesina Ilustrada»: essa ideia de há livros que podem mudar para sempre a nossa relação com a literatura.
«Há uns dias, telefonou-me Horácio Castellanos Moya para me dizer que Bolaño estava hospitalizado, doente do fígado, grave, tu não lhe mandes os teus livros porque o camarada está muito mal, disse-me. De facto, já tinha dois exemplares empacotados e prontos para lhe enviar para a sua residência em Blanes, acompanhados de uma breve carta, escrita à mão, solicitando-lhe a sua participação neste manuscrito. Hoje de madrugada [14 de Julho de 2003], Roberto Bolaño faleceu.
Como uma espécie de pêsames literários, ou coisa parecida, transportei vários dos seus livros comigo durante todo o dia. Haverá melhor maneira de nos despedirmos de um amigo que se conheceu apenas através da sua literatura do que relê-la? Bolaño dissera que nunca se acaba de ler, ainda que os livros acabem, tal como nunca se acaba de viver, ainda que a morte seja um facto certo. Bolaño dissera que queria um enterro ao qual pudesse chegar pelos seus próprios pés ou, em alternativa, uma cerimónia viquingue: o morto, o seu filho e os seus amigos fantasmas, mais ninguém. Lá estarei eu, então, entre tantos amigos fantasmas, quando as suas cinzas forem espalhadas no mar pelo seu filho Lautaro.
Para mim, digo, ou talvez o tenha dito Bolaño numa entrevista qualquer, é difícil responder à pergunta acerca da razão pela qual escrevo um livro. Certamente porque é aquilo que sei fazer melhor. Certamente, Roberto.»
Um excerto de O Anjo Literário, de Eduardo Halfon (Cavalo de Ferro 2008, trad. de Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu), publicado no Bibliotecário de Babel. A imagem é a fotografia que ilustra a edição original (Alfaguara, 2004) do livro de Halfon.
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