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2666

A literatura é um ofício perigoso.

A certeza porém foi que nem Pelletier nem Espinoza visitaram Norton no seu quarto nem uma única vez, pelo contrário,o quarto que Espinoza visitou, uma vez, foi o de Pelletier, e o quarto que Pelletier visitou, duas vezes, foi o de Espinoza, entusiasmados como crianças perante a notícia que se espalhava mais depressa do que um rastilho de pólvora, do que uma bomba atómica, pelos corredores e pelas reuniões em petitcomitédas jornadas, ou seja, que Archimboldi era candidato ao Nobel naquele ano, uma coisa que para os archimboldistas de todos os lados era não só um motivo de imensa alegria como também um triunfo e uma vingança. A tal ponto que foi em Salzburgo, precisamente, na Cervejaria O Touro Vermelho, durante uma noite cheia de brindes, que se assinou a paz entre os dois grupos principais de estudiosos archimboldianos, isto é, entre a facção de Pelletier e Espinoza e a facção de Borchmeyer, Pohl e Schwarz, que a partir de então decidiram, respeitando as suas diferenças e os seus métodos de interpretação, juntar esforços e não voltarem a passar rasteiras uns aos outros, o que expresso em termos práticos queria dizer que Pelletier já não vetaria os ensaios de Schwartz nas revistas onde ele mantinha um certo ascendente, e Schwartz já não vetaria os trabalhos de Pelletier nas publicações onde ele, Schwartz, era considerado um deus.

 

 

«Viver neste deserto, pensou Lalo Cura enquanto o carro conduzido por Epifanio se afastava do descampado, é como viver no mar. A fronteira entre Sonora e o Arizona é um grupo de ilhas fantasmagóricas ou encantadas. As cidades e as aldeias são barcos. O deserto é um mar interminável. Este é um bom sítio para os peixes, sobretudo para os peixes que vivem nas fossas mais profundas, não para os homens.»

 

José Mário Silva publicou um excerto, tirado directamente da página 642.

 

Sacrofobia – medo ou aversão ao sagrado, aos objectos sagrados
Gefirofobia – medo de atravessar pontes
Claustrofobia – medo dos espaços fechados
Agorafobia – medo dos espaços abertos
Necrofobia – medo dos mortos
Hematofobia – medo do sangue
Pecatofobia – medo de cometer pecados
Clinofobia – medo das camas
Tricofobia – medo do cabelo
Verbofobia – medo das palavras
Vestiofobia – medo da roupa
Iatrofobia – medo dos médicos
Ginefobia – medo da mulher
Ombrofobia – medo da chuva
Talassofobia – medo do mar
Antofobia – medo das flores
Dendrofobia – medo das árvores
Optofobia – medo de abrir os olhos
Pedifobia – medo das crianças
Balistofobia – medo das balas
Tropofobia – medo de mudar de situação ou lugar
Agirofobia – medo das ruas ou de atrevessar uma rua
Cromofobia – medo de certas cores
Nictofobia – medo da noite
Ergofobia – medo do trabalho
Decidofobia – medo de tomar decisões
Antropofobia – medo das pessoas
Astrofobia – medo dos fenómenos meteorológicos
Pantofobia – medo de tudo
Fobofobia – medo dos próprios medos

 

À lista que Roberto Bolaño enumera num diálogo entre um polícia e um directo de manicómio, José Mário Silva acrescenta a 2666fobia: o medo de não acabar o livro de Roberto Bolaño.

O segundo melhor de 2666, na opinião de Rogério Casanova.

 

«Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, em direcção a um conjunto de majólicas listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (...) Quando o último filósofo do comunismo já estava finalmente a chegar à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria com estupefacção que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pena. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E dizia-lhe: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou explicar-te. E depois deixa-me em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a desmoronar-se nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância, e dos Urales, e da Sibéria, e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da algibeira e dizia:

 

- Creio que está na hora de beber um copinho.»

 

2666, de Roberto Bolaño, pp. 267-268

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«Um livro contra o esquecimento que, nas suas qualidades e nas suas imperfeições, é uma profissão de fé no poder da literatura.» Bruno Vieira Amaral